sábado, 19 de julho de 2025

Em memória de mim: por que a Ceia não deveria ser negada a ninguém

A Ceia do Senhor, conhecida também como “refeição noturna do Senhor”, é um dos símbolos mais importantes do cristianismo. Segundo os evangelhos, ela foi instituída por Jesus de Nazaré na noite anterior à sua morte, como um ato de lembrança e comunhão. No entanto, em determinadas tradições religiosas, esse rito foi transformado em um privilégio reservado a uma minoria, criando distinções que nem os evangelhos e nem o próprio Cristo parecem endossar. Entre essas tradições, destaca-se o entendimento promovido pelas Testemunhas de Jeová, organização que ensina que apenas os que afirmam ter uma “esperança celestial” devem participar do pão e do vinho.

De acordo com a interpretação oficial do Corpo Governante — a liderança central das Testemunhas de Jeová — somente um pequeno grupo de cristãos, chamado de “ungidos”, deve participar da Ceia, enquanto a grande maioria dos fiéis, mesmo sendo ativos e devotos, assiste ao ritual sem participar. Essa doutrina, fundamentada em interpretações específicas de textos como Apocalipse 14:1-3 e 1 Coríntios 11:26, acabou criando um cenário paradoxal: um memorial que simboliza a entrega de Cristo a todos se tornou, para muitos, um gesto que lhes é vetado.

É legítimo questionar se essa distinção tem base sólida nos próprios ensinamentos atribuídos a Cristo. Nos evangelhos, não há qualquer referência a uma “classe ungida” ou a um limite de participantes. Pelo contrário, Jesus simplesmente diz: “Fazei isto em memória de mim” (Lucas 22:19), sem impor condições ou critérios doutrinários. Ao longo de sua trajetória, ele rompeu barreiras sociais e religiosas, comeu com pecadores, acolheu excluídos e desafiou os sistemas que tentavam mediar o acesso das pessoas a Deus. O convite para a Ceia, à luz desse contexto, parece ser uma extensão dessa proposta de inclusão radical.

Além disso, segundo os próprios evangelhos, Jesus não excluiu Judas Iscariotes do momento da Ceia, mesmo sabendo de sua iminente traição. Esse gesto é, no mínimo, simbólico: se até aquele que o entregaria foi mantido à mesa, que justificativa haveria para barrar alguém por não se identificar com uma “esperança celestial” específica?

O que se observa é que a doutrina das Testemunhas de Jeová transforma um símbolo de comunhão em um marcador de distinção, reforçando um sistema hierárquico no qual poucos são autorizados a representar o corpo e o sangue de Cristo, enquanto a maioria apenas observa. Isso contrasta diretamente com os princípios de liberdade de consciência e de acesso direto a Deus que muitas tradições cristãs defendem.

Mais do que um debate doutrinário, trata-se de uma questão de coerência ética. Até que ponto uma liderança religiosa pode definir quem merece ou não participar de um ritual que, nas palavras do próprio Cristo, foi dado “por vós”? Quando uma organização se coloca entre o indivíduo e seu relacionamento com um símbolo sagrado, corre-se o risco de que o controle institucional substitua a fé pessoal.

Em tempos em que o discurso sobre espiritualidade caminha lado a lado com a valorização da autonomia e da consciência, talvez seja hora de reavaliar certas práticas. A Ceia não deveria ser um privilégio, mas um convite. Negá-la a alguém com base em interpretações humanas é esquecer que, segundo o relato bíblico, o próprio Jesus repartiu o pão sem fazer acepção. Relembrar seu gesto não é apenas participar de um rito — é recusar a lógica da exclusão.

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